Depois de um longo e tenebroso tempo sem escrever uma linha sequer, volto aqui a esse espaço para registrar fatos do cotidiano. A desmotivação vem da pouca liberdade de expressão que cerceia o desenvolvimento natural dos temas que a verdadeira arte exige, mas vamos lá...
As rolinhas da avenida Nove de Julho
Observar com detalhes é o principal motor de um amante de escrever. Durante meu trajeto no ônibus urbano, verifico e conjeturo as mudanças que ocorrem na grande cidade de São Paulo.
Ao balanço do veículo lotado, certifico-me com tristeza da eliminação de algum grafite agradavelmente bonito que deixou de colorir e embelezar grandes paredes. Ao lado da passarela da rua das Noivas, uma imensa imagem de mulher criado por Melim, na parede lateral de um edifício verde claro e desbotado, foi substituída pelo branco inexpressivo. Fico imaginando o que virá em seu lugar...
Com insatisfação, constato as pichações ao longo do viaduto Papa João Paulo II, o antigo Anhangabaú, bem como, o aumento significante de pessoas habitando o local, sujo, barulhento e impróprio.
Já na Avenida Nove de Julho, causa repulsa a imagem do Ministério da Saúde exibindo sua decadente imagem, todo invadido por movimentos sociais constantes, problema que se apresenta insolúvel.
Afinal, chego a meu destino. E as vejo sempre ali, no mesmo lugar, durante meses a fio em que faço esse trajeto: sempre imóveis, pregadas nos galhos da mesma árvore, gêmeas univitelinas perfeitas, da mesmíssima cor, tamanho e aparência.
Ali, no meio do trânsito infernal do dia a dia, indiferentes ao barulho e a poluição, faça frio ou calor, tempo seco ou chuvoso, lá estão elas na sua rotina estafante e idêntica para os olhos de quem as observa. De vez em quando, uma revoada desce à cata de sementinhas no canteiro de terra ou de bichinhos que esvoaçam em seu passeio mortal. Não demora muito e retornam ao mesmo lugar no tronco, inabaláveis, estáticas e indiferentes à movimentação a seu redor.
Felizes com sua mesmice, aqueles pássaros não viajam, não se aventuram, não trocam o certo pelo duvidoso, são uma lição de vida para nós, humanos, que fugimos das ações habituais diárias, sonhando com férias em locais paradisíacos, distantes...
É admirável a paciência e perseverança com que cumprem sua missão, sem esperar grandes mudanças em sua já conhecida rotina.
Hoje está mais frio do que de costume, o inverno agride com mais rigor este ano, o vento gelado corta a avenida, entretanto, mais firmes do que nunca, lá estão, inchadas e gordas de penas, uma possível tática para enfrentar a natureza e suas contradições, grudadas aos galhos da mesma árvore, talvez uma jaqueira em crescimento. Não piam, não emitem som algum, nenhum choro ou ruído. Aguardam a noite chegar e, me pergunto se adormecem ali mesmo ou mudam para árvore próxima, mais encopada e cheia de folhas.
Por um momento relembro trecho da frase bíblica de Olhai os lírios do campo: ..."Olhai as aves do céu que não plantam e nem semeiam, mas Deus as alimenta e as veste..." e do magnífico romance do mesmo nome do autor Érico Veríssimo:" Só foge da solidão quem tem medo dos próprios pensamentos, das próprias lembranças..."
Duas pérolas verdadeiras. Tanto nos preocupamos com o dia de amanhã e, no entanto, essas avezinhas nada fazem e têm o sustento diário garantido; do mesmo modo, nós, humanos, morremos de medo da solidão, principalmente nas últimas quadras de nossa existência, provavelmente por puro medo de que as recordações acabem com a paz de espírito e atormentem nossos últimos momentos...
Porém, essas rolinhas da Avenida Nove de Julho no seu modo solitário e rotineiro nos ensinam como viver bem...