segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

A cadeira esquecida

 

Entre outras efemérides, o dia 20 de fevereiro é dedicado aos animais de estimação... Assim...







 

Quando olho a velha cadeira de madeira da varanda, parece que vejo a sua meiga imagem.

Lembro que te salvei da morte com apenas três meses de vida. Tua primeira dona não te queria e te colocou portão afora usando uma vassoura. Recordo do teu olhar assustado, seu pelo amarelinho claro e grandes olhos azuis.

Foi paixão a primeira vista, percebi o perigo iminente que corrias enquanto assustado  e desorientado ganhavas a rua.

Por sorte, estávamos a pintar a nossa casa em Rio Claro, ajeitando daqui e dali, fazendo reparos na tentativa de melhorar a aparência daquele pequeno sobrado onde morávamos para colocá-lo à venda, antes de retornar à São Paulo definitivamente desta vez. Pude vislumbrar a cena que me deixou indignada e ao mesmo tempo preocupada, temendo que o pior acontecesse se ganhasses a avenida ao lado, onde os carros desenvolviam grande velocidade. Eram três gatinhos, seus irmãos; um deles de imediato foi atropelado na citada avenida perdendo a vida de uma maneira brutal; o outro, não consegui ver para onde foi, mas você, como se fosse mandado pelos anjos do céu, perpassou a grade em frente a casa onde estava e te pus a salvo, dei-lhe água e alimento.

Terminando o trabalho da casa, preparei-me para deixá-la, no entanto,  não tive coragem de abandonar-te ali, à mercê da própria sorte... Um filhote bebê de apenas três meses. Deixei de pegar o ônibus de volta, peguei carona com um ex-vizinho caminhoneiro que passaria pelo bairro do Butantã levando-te comigo em uma caixinha improvisada e bem fechada. Corri o risco de ser despejada do ônibus até o Centro de São Paulo onde morava. E lá estava você, sempre comigo. Te vi crescer, ganhar a idade adulta. Enfrentamos mudanças de apartamento, para um sítio em Igaratá, uma casa térrea em São Bernardo e finalmente para o nosso apartamento definitivo que foi a sua última morada.Curioso é que você seria um presente para minha filha, porém, ao se casar, ela não teve coragem de separá-lo de mim, dado ao apego entre nós dois.

Muitas passagens felizes, um relacionamento quase espiritual; você passou a entender uma infinidade de palavras do meu vocabulário e respondia no seu idioma felino todas as vezes que te chamava ao meu lado. Seu local preferido era a cadeira na sacada do apartamento, ali ficavas já na idade mais adulta entre a sombra das plantas, a tomar o sol da manhã, aproveitando aqueles raios benditos. 

O primeiro susto...Você se mostrou doente, os olhinhos irritados e sempre a lacrimejar, perdeu o ânimo, a vontade de brincar com as bolinhas de papel-alumínio de que tanto gostavas, ainda respondendo de forma triste os meus apelos...

No veterinário, após exames, soube que estava com problemas respiratórios, mas graças a Deus descoberto em tempo, o que me deixou ainda mais apegada a ti. Já sem a companhia dos filhos, todos casados, cada qual seguindo a sua estrada, lá estava eu, apenas com o marido e Nini, meu amado  e inseparável gatinho.

Ficaste bom, a alegria voltou ao meu lar. Compartilhamos excelentes momentos juntos, até que um dia após anos daquele triste incidente, observei que já não apresentava mais a disposição de antes. Julguei ser culpa da idade, 14 anos, não eram poucos para a vida de um felino...

Entretanto, conforme os dias passavam ligeiros, sua condição foi piorando, lamentavelmente. Correndo novamente ao veterinário, após baterias de exames, confirmou-se: comprometimento dos rins em franco desenvolvimento. 

Para meu sofrimento, acompanhei sua agonia de tratamento, soro, injeções intermináveis, coisas que te deixavam totalmente agressivo, para minha surpresa, um animal cuja docilidade era impressionante. Regressando a casa, demonstrando uma ligeira melhora, fui incansavelmente administrando todos os medicamentos que lhe foram prescritos. 

Veio a piora, agora, não mais sustentava sua linda e imponente cabeça, sempre cabisbaixo e mudo...Deixou de comer para  o meu desespero.

Muitos amigos me aconselhavam a levá-lo para a Eutanásia. Não tive coragem de ser a carrasca que extermina a vítima indefesa. Jurei que suportaria até o último instante, até o último suspiro que darias, sem desistir de te acompanhar e lhe dar ajuda. 

E foi o que ocorreu após uma semana. Fostes tranquilo, numa noite estrelada e fria entre minhas lágrimas de tristeza e dor.

 Nunca mais te esquecerei,  e ainda hoje, fitando a cadeira vazia de que tanto gostavas, penso numa nova versão da música folclórica americana Old Shep:

"Se os gatos têm um céu, só uma coisa eu sei: Nini, você tem uma morada maravilhosa"...

 

* A música Old Shep é uma canção americana do campo, imortalizada na voz de Elvis Presley, que conta a história de um cão que o próprio dono teve que exterminar, porque estava muito doente. 

E no final ela diz: "If dogs have a heaven, just one thing I know, Old Shep, has a wonderful home" ( Se cachorros têm um céu, só sei de uma coisa: Old Shep, você tem uma morada maravillhosa).