quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O pedestal

Fazendo compras nas proximidades da rua 25 de março, senti-me num inferno em vida. Calor sufocante já logo pela manhã, gente, gente e mais gente... Não se sabe como as pessoas se proliferam pelos quatro cantos daquelas imediações e  o que é pior, pessoas sem qualidade, sem a educação e o perfil de organização necessários para conviver com tremenda aglomeração em tão exíguo espaço.Ruas que há muito deveriam ter sido transformadas em calçadões para os pedestres que são a maioria no local, entupidas de carros que se amodorram em uma terrível marcha lenta tentando ganhar espaço e avançar a seu destino; muitos deles ainda se aventurando em estacionar nos locais garimpados pelos flanelinhas do lugar. Em sintonia com toda esta movimentação, um barulho ensurdecedor invade o ar, seja pelas músicas dos Cds pirateados que continuam, a despeito das batidas policiais, sendo comercializados, gritos de camelôs que tentam a todo custo chamar a atenção das pessoas para que comprem  seus produtos, apitos que ecoam "hei, titia" arrepiando até os cabelos do ser mais calmo deste planeta, fogos, os iluminadores, sendo queimados em plenas ruas...
Como que para poder acalmar-me um pouco,  procuro ignorar toda esta parafernália local e assobio mentalmente a jóia musical de Ernesto Nazareth, o nosso Chopin brasileiro, a valsa "Coração que sente" e a mentalizo tocada pelo bandolim e não pelo piano como sempre a interpreto, porque aquele instrumento tem o poder de me fazer voar até a década dos  20 quando foi criada e  a despeito de não ter vivido nesta época, reside em mim a certeza de que tenha sido muito mais agradável de que esses tempos malucos onde ninguém respeita ninguém.
Caminhando pela calçada procurando por loja de brinquedos, passei por uma loja que vendia pedestais... Aqueles relógios imensos de madeira, que batem solenemente as horas tão fortemente marcadas como a melodia dos sinos...
Bastou apenas um olhar e...



Tempus fugit...



Lembrei-me de 15 anos atrás, era então por volta de 1995, mais ou menos, talvez antes...Minha cabeça já não consegue precisar ao certo. Você me telefonara daqui de São Paulo para a cidade de Rio Claro onde então residia já há 8 anos:
-Alô, filhinha, como está?
Sua voz misturava-se com os mais diversos  sons dos relógios da loja para a qual vendia; sons musicais de carrilhões, cucos, pedestais.
-"Pai, que bom te ouvir", foi o que pensei, mas minha voz respondeu: Tudo bem. E a mãe, meu irmão?
-Estão todos bons. E meus netinhos, o Leonardinho, a Bicudinha? Ai , que saudades estou deles...
-Estão crescendo a olhos vistos, pai. Quando vocês vêm para cá?
-Não sei, filha, mas breve irei visitá-los.Estou te ligando para saber o que quer ganhar de Natal.
-Ah, pai, não se incomode não...
-Faço questão...Eu queria te dar um relógio, sabe...- falava com a voz já meio ofegante pela doença que o consumia.
-Estou vendendo um carrilhão que é muito bonito, mas o que eu adoraria mesmo, é te presentear com um pedestal daqueles de madeira, são muito lindos.
Neste exato momento, seja por coincidência ou não, soaram graves as badaladas do pedestal da loja numa música séria que calavam fundo na alma.
-Mas, pai, este relógio deve ser caríssimo, pelo que o senhor fala, enorme e de madeira...
-Faço questão, não sei se vou conseguir te dar exatamente um pedestal, porém, se não for possível, um carrilhão ou outro de parede, você aceita?
-Claro, pai. "Não precisa ser pedestal, qualquer presente vindo de você é maravilhoso", era o que deveria dizer, entretanto respondi: obrigada.
Com a voz confundindo-se entre a música das horas, ouvi ainda meu pai me descrevendo o pedestal que ele achava fino, elegante fazendo-me achar uma pessoa muito importante, pois era o relógio mais caro da loja para a qual trabalhava. E era feito em madeira de cerejeira, embuia podendo ter detalhes entalhados artisticamente ou não.
Sei que não foi possível, meu querido pai, dar-me de presente o seu lindo pedestal. Sei também que todo o esforço que fizestes carregando com seu frágil corpo a pesada mala de catálogos e mostruários, não te possibilitaram realizar a tua vontade, contudo, ainda continua marcando as horas incansavelmente na minha parede da copa aquele relógio que me destes de presente de Natal. Continua ainda brilhando o painel dourado onde  as letras pretas dizem: "O senhor é meu pastor, nada me faltará", frase que até certo ponto retrata a ironia do destino ao sugerir que perder um pai não é uma falta, uma perda incalculável que jamais poderá ser reposta ou esquecida.
Saiba,  que, de onde estiveres, na distância espiritual de anos-luz, que nunca deixei de te amar, de reconhecer todo o sacrifício feito por mim.Quero que saibas que aquele relógio que marca minhas horas com o qual me presenteaste é o mais lindo pedestal que jamais alguém recebeu pelo valor que ele encerra, é cuidado como o mais precioso dos tesouros porque foi-me dado pelas tuas mãos que tanto sofreram para dar tudo de si, sem nada receber em troca.
Vejo-me no caminho de volta para casa, dentro do ônibus quase vazio, já saí do inferno e passei pelo paraíso.