domingo, 14 de junho de 2020

Fala-se muito em racismo, preconceito de cor, raça. Entretanto, creiam,o pior deles é o de classe social. Sofremos diariamente com isso e, particularmente em mim, calou-me fundo desde à infância através da figura de minha mãe...




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Fantasia de fitas

Vai longe o tempo, lá pelos idos de 1957 ou 58 quando comecei a me entender como gente. Ouvia sempre os queixumes de minha mãe, mulher mais trabalhadeira como aquela nunca vi em toda minha vida!
É, ela dizia num reclamar quase lamento, nunca me valorizaram. Meu sogro dizia sempre: vou dar os móveis de presente de casametno, só que, "conforme a noiva,serão os móveis". 
E assim havia sido, mobília simples para uma noiva de família pobre como ela. Que diferença para o presente da filha, requintado e caro naquela época. Isso foi tornando minha mãe uma pessoa amarga, baixa autoestima, angustiada. Doutra vez, lembro-me por volta de meus nove anos, necessitei de uma cirurgia; apendicite crônica; e ela costurando naquela semana inteira, trabalhando em lindo pijaminha branco de alpaca com detalhes de vivos verde-água nos bolsos da camisa e da calça. Mãos de fada, caprichosíssima em detalhes e acabamento, mas logo minha avó paterna chega em casa, e não lhe quero mal, absolutamente, que Deus a tenha em sua glória, uma vez que partiu há muito desta para uma melhor, ou pior, sei lá... Ao ver o pijama semiacabado que minha mãe labutava por terminar, pôs-se a chorar copiosamente, nos deixando constrangidos pela sua comoção enquanto pranteava e dizia entre soluços: "Não, não deixarei minha neta operar com um pijama desses, de forma alguma". Amanhã mesmo, irei ao bazar da Moda, (era um desses lugares frequentados por pessoas mais abastadas, economicamente na época em Araçatuba, residíamos lá por esse tempo) comprarei pijamas. Senti a decepção de minha mãe em seus bonitos olhos verdes que teimavam em segurar uma lágrima e, acho que desde essa época, ela foi se desvalorizando...
No dia seguinte, a caixa foi entregue com dois pijamas de jérsei (lembro-me até hoje, minha memória é fotográfica, não sei se isso é bom ou ruim), que nem se comparavam ao trabalho que estava fazendo, manualmente, muito mais valoroso e mesmo de melhor qualidade. E a frase que veio acompanhada com os pijamas, feriu mais do que navalha: "veja se se compara a esses trapos que você estava fazendo". 
Chorei muito, mas muito mesmo, ao ver o desalento e submissão de minha mãe, esperava que dissesse: "não, ela não vai usar esses pijamas, pode levar de volta, os meus são melhores, muito obrigada!". Contudo, abandonou seu trabalho, e lá estava eu no hospital com os tais pijamas de jérsei. Ah, como gostaria de dizer a minha mãe que essa foi uma lição ruim que ela me passou: não se dar valor.
 Gostaria de afirmar do fundo do meu coração, isso não se faz. Chegou um Carnaval, todas as primas com lindas fantasias compradas em bazares de prestígio da cidade e minha mãe, mais uma vez com suas mãos maravilhosas costurou uma fantasia de havaiana, lembro-me com detalhes: o cós era vermelho, se não me engano, e trazia preso nele várias fitas coloridas que iam até o comprimento do joelho, um top na mesma linha, muito bonitinho, enfim, qualquer criança no vigor da infância é muito linda. Entretanto,a fantasia era maravilhosa! 
E lá fomos nós para um clube da cidade chamado Clube dos Bancários. Não me recordo bem desse detalhe, mas vou inquirir minha mãe, ela deve ter pago para que entrasse no clube, não tínhamos posse, nem vida social de falsos ricos, meu pai era assalariado e dava duro em um frigorífico trabalhando e fazendo hora-extra para nos dar o sustento. 
Uma das primas, na verdade, filha adotiva de minha avó paterna, veio por obrigação nos cumprimentar rapidamente dizendo:"Que fantasia linda!" E logo se distanciou com as amigas em trajes luxuosos de dama antiga, sombrinha em rendas, cabelos arrumados, lindo vestido longo, espartilho e anquinhas, um luxo! Para minha mãe, isso foi o suficiente. Vi o resultado daquela observação rápida estampado em seu semblante onde o desânimo tomou lugar. 
Como criança que era, não percebi esse desprezo que ela disse estar no inconveniente comentário e o distanciamento rápido com  as amigas.
Isso calou fundo na alma de minha mãe. Sempre se acha inferior, isto fez com que preferisse se  afastar da vida social e familiar. Hoje, depois de bem amadurecida e calejada pelo efeito do tempo, a entendo perfeitamente! E tenho a dizer, que a pior forma de acabar com alguém é diminuir sua capacidade tendo como parâmetro a fútil vida social, a valorização do inútil e das convenções sociais, que passam por cima de sentimentos e valores preciosos que deveriam ser respeitados!