domingo, 24 de maio de 2020

Quanto tempo sem escrever nesse espaço... Não é falta de inspiração, é de tempo mesmo! Aliado ao desânimo de ter que escolher temas que não contrariem ideologias atuais... Sim, não há verdadeiramente uma liberdade na escolha de temas que devemos escrever, isso tolhe a criatividade, mesmo em um caderno aparentemente solitário como um blog. Mas hoje optei por uma crônica que volta a outro cotidiano mais antigo ...




Violão Seizi Tokyo | Folk | Eletro Acústico | Brown Burst - BarraMusic




Por onde você andará? 


Assistindo a um programa cultural erudito, coisa difícil de se garimpar nesses terríveis dias que estamos vivendo, onde o tema pandemia se repete nem digo diariamente, mas instantaneamente, o solista de violão, por sinal perfeito, de sobrenome Camarero interpretou uma linda melodia, composta pelo saudoso Dilermano Reis.
Como a nossa mente associa os fatos! Esse é um exemplo gritante de associação de ideias: de Dilermano, a Abismo de Rosas, música maravilhosa interpretada ao violão que muitos relacionam a temas bucólicos, sertanejos... Entretanto, a sonoridade, o conjunto harmonioso, carregado de tristeza, embala nosso espírito e nos leva muito longe no tempo e no espaço...
 E foi o que aconteceu comigo. Deixei de ouvir a TV, numa viagem pelo tempo, encontrei-me em um trem de ferro na década dos anos finais de 1960, contava então com meus róseos 15 anos, em todo o vigor da juventude! Por incrível que pareça, ainda me lembro da roupa que usava: um conjunto na cor ocre ou mostarda, composto por uma calça comprida, boca de sino e uma blusa sem manga, decote V, ornada com três sutaches coloridos a acompanhar o desenho da cava do decote. Várias pessoas da família acompanhavam a minha viagem até a cidade de Corumbá, Mato Grosso do Sul. Além de meus pais e irmão, minha avó paterna, um primo e meu namorado. Ao chegar ao destino, conheceria meu avô paterno, há muitos anos separado de minha avó. Ficaria hospedada na casa de um tio, irmão de meu pai e aproveitaríamos para uma consulta, digo, quase espiritual, com uma senhora chamada Cacilda, famosa por fazer curas milagrosas naqueles tempos. A fama dela crescera tanto, que todos iriam consultá-la, cada qual com seu problema de saúde. Mas isso não vem ao caso nesse relato.  
A viagem, sufocante, um calor abrasador e o trem acabava de quebrar pela segunda vez. O tédio, o desânimo  tomava conta de todos nós. Por sorte, meu namorado trouxera o violão, estávamos arranhando algumas músicas populares da nossa adolescência, quando ele se manifestou humilde, voz baixa, cabelos alongados, à moda da época, rosto simpático:
-Posso? - referindo-se ao violão.
Passamos o violão e com a habilidade de um virtuoso ele começou a tocar Abismo de Rosas. Fez-se silêncio mortal no vagão parado. Cada acorde tocava mais a alma, produzindo as mais variadas emoções. Não sei se a mim, um pessoa sempre muito sensível, apaixonada pela música erudita desde criança, quase me levava às lágrimas. Quando terminou, todos o aplaudiram comovidos, ele agradeceu tímido, sem soberba ou vaidade. Desceria logo, o trem já estava em movimento e logo chegou a Campo Grande, onde desceu. Nem me lembro do seu nome, contudo, ficou um vazio, uma lacuna  inexplicável no ar, que até hoje me frustra por nunca mais ter encontrado aquele artista silencioso.
Casada atualmente,  na idade madura, rosto marcado pelas experiências vividas,   depois de tanto tempo, ainda me pego cismando e pintando aquela cena, para mim emocionante e me pergunto, se estará vivo, morto, casado, solteiro,  sem a certeza de uma resposta concreta. Terá continuado  com sua música e seu talento? Ou tudo terá sido abandonado?
Na incerteza, uma única certeza, creiam, ele salvou aquela viagem enfadonha!