quarta-feira, 16 de novembro de 2022

As pérolas do ENEM

Após quase 35 anos a serviço da educação, como professora de línguas da rede pública estadual, acredito estar apta a escrever sobre o assunto.





 

Por longos anos, a tentativa de descobrir antecipadamente o tema a ser abordado neste exame foi em vão. Acredito que isto tenha ocorrido com  muitos professores como eu; fiquei sabendo que muitos educadores, professores de cursinhos preparatórios para os vestibulares do país chegam ao ponto de seguirem literalmente os passos dos preparadores da prova, descobrindo que bancas de jornais frequentam, a  que programas assistem, que livros leem, nessa tentativa; uma investigação infindável cujo intento quase sempre é infrutífero.

Verifico que a cada ano o nível cultural e de desenvolvimento dos alunos decai terrivelmente e apesar dos slogans pregarem o contrário, é assustador o grau a que projetos curriculares utópicos aliados a falta de atitude e envolvimento intelectual dos alunos e  incompetência docente em vários casos  têm levado grande parcela de nossos jovens das escolas públicas estaduais; incapazes de elaborar um parágrafo sequer em uma linguagem formal que apresente correção gramatical. Nem sequer frases coesas e coerentes  fazem parte do seu discurso escrito,  pobre e muito aquém do que o Exame cobra, o que me deixa terrivelmente triste perante a impotência de atitude a que o professor é submetido perante os parâmetros curriculares impostos pela Secretaria da Educação. Abro aqui um parênteses para incluir outros vilões responsáveis pela decadência de conhecimentos linguísticos e de outras áreas: as redes sociais e mídia em geral. O conteúdo digital que chega através da internet é imenso e grande parte dele de muito boa qualidade, ocorre que esse tipo de leitura formal contida em artigos científicos, arte, reportagens sérias que não vêm carregadas de ideologias políticas há muito deixou de interessar o jovem pelo próprio distanciamento que ele apresenta desse tipo de padrão linguístico. E, regra geral, não há interesse em algo que não conseguimos compreender. As consequências são graves e colorem um quadro dantesco no campo educacional, pois os adolescentes entregam-se ao lazer das redes sociais, satisfazendo-se com a enorme quantidade de jogos e sites de relacionamento, utilizando da linguagem do internetês, sem obrigatoriedade da correção gramatical, já que esse discurso é um misto de linguagem coloquial, abreviaturas, siglas em inglês e outros recursos, bastante distante do que é cobrado em avaliações externas.   Em muitos casos, os jovens aventuram-se pela dark internet, geradora de verdadeiros monstros sociais, haja vista  não apresentar regulação legal, ética ou valores dignos do ser humano. Os programas televisivos pouco apresentam de novo, repetitivos, muito pouco oferecem em qualidade e cultura. Reafirmo a impotência do professor como agente de mudanças necessárias na área da educação primeiramente quanto ao conteúdo programático, pois  quanto à carga horária disponibilizada pelo sistema às aulas de Língua Portuguesa, atualmente, mostra um número de aulas satisfatório, uma vez que são oferecidas diariamente, o mesmo não acontecendo em Língua Inglesa; apenas duas aulinhas semanais e exclusão da disciplina em alguma série do Ensino Médio. Apesar das grandes mudanças de cunho social que envolveram todas as áreas da Educação, uma delas, não pôde e não pode ser mudada: a qualidade da linguagem. Pela sua  própria efetividade responsável na compreensão, padronização de caráter prestigiado nas áreas científicas, o padrão formal torna-se  uma obrigação e ponto. Falando sob conteúdos do currículo de Línguas,  todo educador se vê envolvido e praticamente obrigado a cumprir planos de caráter puramente, perdoem o neologismo, "polititesco": comemoração das mesmas datas durante todo o ensino básico; coisas que alunos já estão cansados de saber através da mídia massiva que exibe diuturnamente os mesmos exaustivos e enfadonhos temas, não saindo do mesmismo de sempre. Obviamente, se temos esses projetos a desenvolver é notório que cada um deles envolverá grande parte das aulas na confecção de cartazes e outras atividades em detrimento do exercício da construção e reconstrução de texto específicamente formal,  extremamente criterioso que ocuparia todas as aulas e ainda, em alguns casos, dependendo da dificuldade do aluno seria insuficiente. Grande número de  instituições privadas e estaduais, da atualidade,  formadoras de professores na área de Letras, não os capacitam para esse fim. Por experiência própria e diálogos com esses profissionais, depreende-se que não conhecem gramática de estilo, figuras de linguagem; gramatica normativa, ortoépia, prosódia, grafia; sintaxe de colocação, concordância, regência entre outras. Por que os grandes homens da educação, criadores de currículo, instituições inteiras público-privadas  não veem isso? Usam um tapa-olho ou são obrigados a usá-los? Como permitir a oferta desse tipo de formação medíocre? Já adentraram em uma sala de aula? Porque qualquer leigo que observe os seus próprios filhos, evidencia a fraca competênica desenvolvida nas instituições públicas e grande parte das particulares no âmbito de linguagens principalmente. Nessas últimas, os pais sofrem para custear um filho apenas para obter maior atenção e garantia de segurança, não que toda a rede estatal esteja entregue às traças,  mas grande parte realmente deixa muito a desejar. Durante as aulas, uma parcela considerável de educadores dedica-se apenas a conduzir seus discípulos a absorverem a sua própria ideologia política, não respeitando a individualidade, a vontade e o espírito de análise crítica do discente. Isso é tão forte, que os próprios gestores não têm a força necessária para impedi-los. O resultado reflete-se no nível de conhecimento, no desinteresse, ausência do exercício na disciplina específica, além de visão unilateral do mundo. Fanatismo de tipo algum produz excelência. 

Esse assunto merecia uma Conferência entre todos os envolvidos, com cartas na mesa, jogo duro, orientação na cultura da educação, noções de altruísmo; um mestre não é colocado nesse posto nobre para induzir, obrigar alguém a pensar como ele. O tema desse ENEM 2022 não poderia ser diferente pelo andar da carruagem socialista que tomou conta de todo o mundo e por que não dizer de todo o processo educacional:  "Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais do Brasil". Um misto da área de história, geografia física e política com viés sociológico.  Apesar de ser  apologeticamente apresentado com base numa reportagem da jornalista Vivian Souza do G1 e estar entre as finalistas do prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos  e outros textos de apoio  o assunto a ser desenvolvido não é nada atraente, nada que motive ou instigue alguém a escrever, é o mesmo cânone de sempre, a mesma nota dó que de tanto tocada já desgastou o piano. Minorias, miséria, carência, diferenças, vêm acompanhando a árdua vida humana do estudante. Ninguém se preocupa em indagar do que o jovem realmente precisa, os valores que vêm desenvolvendo na escola, pois através deles todos os problemas são evitados e resolvidos e o principal: ao desenvolver o valor respeito, todo o ser será respeitado, o humano, o animal e o material. A liberdade excessiva que contraria a disciplina necessária a qualquer atividade intelectual  foi deliberadamente aceita e convive-se com ela diariamente.  Como escrever um texto desse quilate em uma linguagem de cunho  formal que não está ao  alcance do discípulo?  O que o ENEM espera com os temas que elege? Verificar a competência escritora ou verificar o nível de sociologia política que ele adquiriu? Não ficará sabendo, as dificuldades são imensas... 

Quando o tema é atraente, motivador,  inspira a escrever, do contrário, é uma lista de palavras em um discurso artificial sem alma, apenas  para obtenção de nota, permitido somente aos que conseguem manejar com habilidade esse jargão.  Isso a meu ver é pura covardia, é engodo, não condiz com o que pode e tem sido ensinado nas escolas.