sábado, 7 de janeiro de 2023

Todos, todas e todes...


Como é difícil conviver com as constantes agressões que a língua portuguesa sofre a todo o momento...

(Texto inspirado em um vídeo postado por um amigo em um grupo de Whatsapp)


😱








Olavo Bilac, o mestre parnasiano, cultuou o nosso idioma, colocando-o num pedestal descrevendo sua pureza e estética, um dos últimos a ser criado a partir do latim, e cita: "Última flor do Lácio, inculta e bela!"  O poema melodioso traz o título  "Língua Portuguesa" e merecia ser lido por todo brasileiro que preze sua pátria e honre sua língua. 

Contudo, ao que parece, não é mais reconhecido ou de bom tom ser patriota ou cultivar a cultura linguística num momento em que se prega a abertura das fronteiras, a obrigatoriedade da cidadania mundial e projeção da língua inglesa como franca, conhecida em qualquer parte do mundo. A tendência é que a linguagem anglo-saxônica venha para ficar como língua universal, dado às constantes agressões que as línguas nativas sofrem; a cada ano, milhões de termos as invadem e vão substituindo muito outros. Como exemplo, no nosso país, a palavra entrega já não existe mais, foi erradicada; delivery a substituiu, assim como  os termos que  até já se encontram incorporados aos nossos dicionários. São tantos os vocábulos que comecei a escrever um roteiro de uma peça teatral cujo personagem usa a cada frase que profere duas a três palavras em inglês: é na academia, no mercado imobiliário, no shopping e em tantos outros locais. 

Lá em meados da década de 2000, quando meu filho se preparava para enfrentar o vestibular da FGV, verificamos que em um deles, o tema da redação fora sobre o desmoronamento da nossa língua pátria; sinal de que naquela época, ainda havia uma preocupação em preservar e valorizar a cultura nacional. Lembro-me bem que na proposta da redação havia um texto de apoio que falava sobre um projeto de lei com o intuito de uma providência nesse sentido.  Atualmente, poucos se importam com essa questão. Tal fato deve estar fazendo Bilac revirar-se em seu túmulo, podem crer.

Essa questão incomoda muito aqueles que ainda têm a capacidade e a virtude de serem  estudiosos e cultivarem seu espírito crítico. A pergunta que não quer calar é: todas essas mudanças nos serão relevantes, trarão algum benefício no futuro ou nos tornam mais escravos do que já somos atualmente? Ainda nos resta alguma chance de escolha, podemos contradizer e ter opinião própria? De antemão, já respondo que não temos mais esse direito, quando a maioria dos povos foi abduzida, teve sua vontade sequestrada pelo convencimento através de propaganda veiculada através de artistas, jornalismo de opinião, indução inescrupulosa e nojenta que prendem em sua teias milhares de almas, causando a transformação e a satisfação de egos através do sonho de consumo, calando suas vozes e unificando seus pensamentos, tolhendo a diversidade do livre arbítrio, roubando da sociedade a capacidade de reflexão e análise perante os fatos, bem como sua tomada de decisão ou conclusão. Não há mais, com raríssimas exceções, seres pensantes com capacidade de tirar conclusões próprias, infelizmente. Com o advento da globalização, a linguagem virtual, a projeção do inglês como meio básico de comunicação, verificamos a dificuldade em valorizar a língua nacional. 

Voltando a falar da integridade da língua portuguesa, cito aqui o trabalho dos gramáticos realizado durante anos e anos no intuito de polir, abrilhantar e tornar elegante o falar e o escrever de uma população; e não falo aqui da gramática descritiva, ou da histórica que trazem cultura e aprofundamento nos conhecimentos linguísticos, refiro-me mesmo à gramática normativa, acessível a qualquer cidadão comum que queira usar adequadamente a linguagem, que aprecie a finesse e o bom gosto, coisas que estão sendo consideradas antiquadas pelos mais jovens, uma vez que a Educação que lhes é oferecida nas instituições de ensino valorizam outros conteúdos em detrimento do esmero na articulação da língua. Posso falar com propriedade sobre isso, haja vista ser professora de língua portuguesa e inglesa durante 35 anos; experiência  que me proporcionou  assistir tristemente a decadência sofrida na educação pública estadual. Se os gramáticos pudessem fazer um manifesto, acredito que o fariam ao ver tanta barbárie e desrespeito com as línguas e sua respeitabilidade.

Criam-se termos, neologismos absurdos sem coerência ou necessidade alguma. Há algum tempo, uma apresentadora por pouco não publicou um dicionário para favorecer sua carreira, o que desastrosamente seria funesto para a alfabetização dificultando ainda mais o trabalho dos educadores que trabalham nessa área. Ainda essa semana, ouvimos indignados, autoridades que ao cumprimentarem seu público eleitor, ou melhor dizendo, seus súditos, citaram: todos, todas e "todes". Mas que bela lição estão passando, num momento que quase ninguém mais se preocupa com essa questão! Gostaria de saber qual a intenção oculta nessa citação, uma vez que o uso do pronome  todos por si só, já seria suficiente para englobar a totalidade dos ouvintes e espectadores daquele discurso. É quando bate uma insegurança total no nosso futuro como nação brasileira, uma desconfiança e incredibilidade na qualidade do ser humano ocupante de um cargo público tão importante, que deveria ensinar a população através de um discurso formal e correto  e não transmitir o inadequado,   dificultar ainda mais o manejo da língua...  

E com lágrimas nos olhos podemos dar outra interpretação ao segundo verso da primeira estrofe do poema de Olavo Bilac: língua portuguesa, "És, a um tempo, esplendor e sepultura... "