sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Sala de aula - local de estudo ou de ascensão social?

É sempre bom conversar com os pré-adolescentes, principalmente os  dessa geração, cuja inteligência digital aflora em conclusões rápidas e coerentes. O diálogo com minha netinha  foi um dos motivos que me levou a escrever sobre esse tema, o outro foi a experiência de 35 anos no magistério...



Sala de aula - personagem importante no desenvolvimento humano



Sempre me pergunto sobre o papel que a sala de aula representa para as crianças, adolescentes e adultos. Muitos dirão que é o local de aprendizagem e não posso dizer que não, porém os conhecimentos específicos que ali são desenvolvidos não estão em primeiro lugar da pirâmede para os alunos. Existe como o próprio *Bordieu afirmava, um desejo de ascensão social, porque ninguém pode negar que ela encerra um grupo em constante interação e o mais importante: a busca por classificação; ou você lidera, assume uma posição de destaque ou se isola, não se integra, e procura outros subgrupos de menos prestígio para se relacionar. 

A hierarquia ali presente traz a figura do professor como líder, entretanto, os  novos parâmetros e rumos que a Educação tomou coloca os alunos em evidência, agrupados ou não, em posição privilegiada. Recordo-me dos meus tempos de aluna, já bastante  distantes em que a disciplina e a ordem eram obrigatórias, havia o medo de errar, a ansiedade por melhores notas, a luta interna para conter-se e não expressar livremente  anseios e revoltas, uma vez que qualquer atitude indisciplinar gerava expulsão, assim como reprovação por três anos consecutivos ocasionava o jubilamento, que nada mais era que a exclusão de qualquer escola pública; apenas as particulares acolhiam o aluno nesse caso, o que na época, causava o desprestígio da escola privada em detrimento da pública que tinha o conceito de excelência pela população. Apesar de todas exigências no setor da educação na década de 60 e 70, era visível a projeção de certos alunos dentro da escola, fosse por porte físico privilegiado, por pertencimento a familias de prestígio na esfera social da cidade ou até mesmo, por aproveitamento e desempenho escolar. Nesse sentido, lembro-me de uma aluna que não vou citar o nome, que causou grande impacto, digo até alvoroço em nossa turma com sua transferência para o nosso grupo: havia um comentário, diria até um alvoroço; uma explosão de disse-me-disses sobre ela no aspecto físico, independência feminina e carisma.Assim que chegou, revelou-se dominante e admirada garantindo seu status de líder. Desde o curso primário, hoje chamado de Fundamental 1, destaquei-me não por porte físico; era uma pessoa bastante comum, extrovertida, apreciadora de literatura, música e poesia o que me impulsionavam a declamar em todas as solenidades e comemorações cívicas,  tornando-me em consequência bastante conhecida na escola que frequentava, o que foi diminuindo no ginásio, hoje Fundamental 2, uma vez que comemorações cívicas resumiam-se mais em desfiles acompanhados da fanfarra em que tive oportunidade de participar. Como obtivesse sempre excelentes notas no primário era sempre elogiada e colocada em posição de destaque. De memorização rápida, participamos eu e um colega até de um certame na rádio local, um concurso de perguntas muito acompanhado pela população escolar. De algum modo, consegui manter meu lugar na hierarquia social. Agora me pergunto: e aqueles discentes sem desempenho relevante, de baixa classe econômica, sem porte físico marcante e comportamento introvertido, que tipo de classificação recebem ou recebiam? Algo inevitável e injusto, todos são seres humanos.

Atualmente tudo mudou, a maneira como se vê educação hoje difere radicalmente, o desenvolvimento no aspecto social apesar de ser um dos principais motivos que impulsionam a educação, não são suficientes para evitar bullying, cyberbullying, violência verbal e até  física, haja vista a liberdade de expressão de que os alunos dispõem, até o ponto de desrespeitar, agredir e até matar seus professores, direção e funcionários envolvidos no processo.  Mais de três décadas no magistério público estadual possibilitam essas conclusões e constatações feitas aqui por essa autora. 

Mesmo com toda essa estrutura, alguns educadores mais ousados arriscam-se a indispor-se contra o sistema batendo de frente com o problema, agredindo alunos e funcionários tentando manter seu status de líder da pirâmide educacional. Há aqueles que desrespeitam os direitos discentes, avançando além da sua função assediando moralmente e até sexualmente seus discípulos. Uma grande parte, felizmente, cumpre sua árdua missão de entregar muito e receber pouco como retorno, seja no caráter financeiro, afetivo e reconhecimento da dignidade que a profissão envolve.  

As escolas privadas não são diferentes, contudo apresentam  uma particularidade gritante: a necessidade de manter a clientela a qualquer custo, principalmente em tempos de competição capitalista selvagem, até diria. Nesse caso, os professores são praticamente obrigados a dar atenção a todos, valorizar  veladamente alunos provenientes de famílias com maior poder aquisitivo. Para que mantenha seu emprego nessas instituições o professor deve ser totalmente ético, neutro em suas ideologias, seguidor comprometido do projeto pedagógico da escola em que trabalha. Quanto aos alunos dessas escolas, o caráter do ter sobrepõe-se sobre o ser, de forma que os de classe social mais favorecida predominam, exibindo produtos e acessórios de prestígio determinados pela grife e poder aquisitivo. Os demais alunos de classes em ascensão ou emergentes  absorvem a cultura vigente e sofrem na tentativa de acompanhar e até ultrapassar os primeiros. Os mais pobres conseguem ocupar os mais baixos patamares, são vítimas de bulying e levam por toda a vida uma baixa autoestima, apenas superada por esforço próprio ou a poder de sessões de análise conduzidas por um profissional.  

Em todas as salas de aula, não importa a qual categoria pertença, há intrínseca uma problemática geradora de insatisfação, de classificação e desclassificação de pessoas e grupos, de rotulações infinitas, julgamentos. O habitus citado por Bordieu em suas pesquisas impulsiona as ações humanas e estas são baseadas em aprendizagem no próprio lar ou com a sociedade, infelizmente, daí afloram os preconceitos de raça, cor, credo e religião e estereótipos diversos como a xenofobia entre outros. A sala de aula é muito importante, pensem sobre isso.

  

*Bordieu 1930-2002. Pierre Félix Bordieu foi um sociólogo francês de origem campesina. Foi filósofo de formação e docente na École de Sociologie du Collège de France. Um grande pensador.

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