segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A duas cruzes

 Boa-noite, caros leitores. Essa crônica de hoje nasceu da curiosidade, da alma inquieta que sente vontade de saber sobre tudo o que ocorre e ocorreu em algum instante da vida...





Passo de carro pela Rodovia dos Romeiros já há bastante tempo. Elegemos essa autoestrada como ponto obrigatório de muitos passeios de sábado. Andando por ali, sei da intensa luta do rio Tietê contra todas as intempéries e maus tratos a que o seres humanos o submetem, como a intensa camada de espuma branca que polui suas águas outrora límpidas e claras; os esgotos que nele são insanamente despejados de forma constante, resultando na eutrofização de seu líquido precioso, favorecendo a aparição das inocentes, mas ameaçadoras algas verdes que destroem o seu oxigênio, causam mau-cheiro e morte de peixes e animais fluviais. Vejo também, que  muitos trechos do curso já foram perdidos por esse processo, exibindo água podre, grossa e estagnada, aos poucos perdendo a guerra da sobrevivência para a imensa quantidade de igarapés que teimam em barrar seu caminho. Chego a me indignar muito com essa causa,  os homens estão brincando com algo muito sério e um dia em breve, não mais adiantará o arrependimento, todos sentirão na pele as consequências desse descaso para com a natureza.

A estrada,  um verdadeiro paraíso que culmina próximo das cidades de Itu e Salto é um verdadeiro milagre da natureza ainda em festa. Rodeada de  Mata Atlântica, exibe vegetais de porte alto, nas duas margens do rio, fornecendo sombra abundante e amena por todo o percurso; bambuzais imensos, eucaliptos vetustos e elegantes. 

Pelo motivo de ser muito estreita e pouco movimentada, a rodovia é palco dos ciclistas que fazem seu treino ordinário, além de motos, romeiros em época de festas religiosas responsáveis por dificultar a passagem dos carros por conta da enorme quantidade de cavalos, burros e charretes. Por volta da quaresma, muitos cumprem suas promessas carregando pesadas cruzes, sacrificando-se para agradecer ou pedir uma graça até chegarem ao santuário da pequena cidade de Bom Jesus de Pirapora.

Vou relembrando com relativa facilidade tudo que vejo por aquele caminho; a gruta em uma das margens, as fontes de água natural, a pequena  capela e  a sala de velório próximo à cidade de Cabreúva. Ouço por vezes quando paramos para um lanche, o canto nítido dos pássaros, o rumorejar agradável das águas do rio, o canto estridente das cigarras, proporcionados pelo silêncio da estrada.

Entretanto, no último sábado, meus olhos fotografaram algo que nunca tinha visualizado naquele caminho: duas cruzes  relativamente pequenas, branquinhas, posicionadas simetricamente uma junto da outra. No mesmo instante, deixei de observar a natureza para divagar involuntariamente em pensamentos instigados por aquelas imagens. Pessoas tiveram ali, naquele local, suas vidas interrompidas, por um acidente, provavelmente. Dificilmente vemos veículos de grande porte, apenas pouquíssimos ônibus e caminhões trafegam. As curvas são acentuadas, sinuosas, à esquerda e a direita,(vou relembrando o que significa cada uma das placas), perigosas se usadas com abuso de velocidade, teria sido esse o motivo das duas mortes? 

Muitas vezes, deparamos com animais de grande porte como cavalos à margem da estrada a pastarem tranquilamente, irresponsabilidade de seus donos que despreocupados e negligentes concorrem para que catástrofes certamente aconteçam... Teria sido essa a causa das duas cruzes? O local muitas vezes durante temporais é inundado pelas águas revoltas do rio que parece se vingar da humanidade; há desmoronamentos, quebra de asfalto, quedas de árvores, que hipoteticamente teriam encurtado o tempo daqueles dois pobres seres, que poderiam ser um casal de jovens apaixonados, ou velhos sonhadores; um pai ou uma mãe com seu filho ou filha, enfim, enquanto me perdia em pensamentos sobre as duas cruzes nem me dei conta de que já havia chegado na cidade de Salto.