sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Abençoai, senhor, o alimento que vamos comer...

 Fiquei muito tempo sem consumir carne. Praticamente a adolescência inteira, para a loucura de minha mãe que se preocupava muito temendo uma anemia...






Tachada como enjoada, comia muito pouco. Na verdade, não tinha apetite e tampouco sentia fraqueza. Bastante ativa, lembro-me a ensaiar peças de teatro e atividades de apresentação de dança coordenando os grupos de colegas na maior disposição possível. Hoje, me ponho a conjeturar porque não comia carne. Recordei-me da casa de meus avós maternos, os Ferreira Santos no bairro Santana em Araçatuba, minha cidade Natal. Ali, não havia um simples quintal. Quase uma chácara, tomava a esquina toda; espaço que abrigava árvores frutíferas, criação de cabras e abelhas, e  me vem à cabeça a imagem de meu avô, José, homem ativo, trabalhador a retirar o mel de Jataí e de outras abelhas que ele mesmo coletara em grandes caixotes. Era interessante o modo como ele fazia isso: quando via um enxame desses insetos, corria a queimar açúcar em ponto de caramelo para esfregar nas caixas  juntamente com folhas de cidreira, folhas de laranja e, batata! Com o cheiro doce invadindo o ar, os animaizinhos se aconchegavam embolados em seu novo lar! Lembro-me das cabras e de uma em especial, a Branquinha, tão dócil, a minha preferida que adorava comer folhas de mandioca, que lhe dava escondido, pois meu avô dizia que lhes fazia muito mal, mas a mente infantil não alcança a compreensão do perigo. Havia também um bode, que sempre ao sair para o passeio se indispunha com o outro de um vizinho chamado Delico. Quanta saudade daquela época! A velha engenhoca num canto, uma fábrica de mel de cana, garapa pura da melhor qualidade. A minha avó, Chica como era conhecida,  a fazer o melado daquela cana e queijos com o leite das cabras. A grande parreira de uvas rosadas, doces como caramelo a agradar as crianças e adultos por ocasião do Natal. Num cercado, a criação de alguns porcos e o quintal praticamente todo tomado pela criação de aves: patos, galinhas Rhodia e Angola, a cantar o seu cocorocó incessante; patos e marrecos que nadavam no tanque de cimento ao longo da cerca próximo ao pé de beladona...

Comecei a observar com o passar do tempo, a execução das galinhas e patos naquela comunidade animal  para os dias de festa. Aquilo me dava um arrepio frio por dentro que subia dos pés à cabeça não conseguindo atinar com o porquê da morte daquelas pobres aves que para mim soava como vítimas à mercê  de homens covardes. Os patos recebiam um tipo de abate diferente, tinham o pescoço decepado. Vendo um tio, Jaime, hoje falecido a cometer esse "crime" como entendia na minha concepção de criança, pus-me a chorar, desesperada ao aconselhamento para me afastar, pois o choro segundo ele, fazia com que o animal sofresse ainda mais . Certa vez, por ocasião do Natal, contrataram um homem para que matasse um dos porcos e para meu desespero, pois encontrava-me por lá, constatei que o animal fora submetido a um intenso sofrimento, uma vez que o "matador" não acertara a faca no local letal do animal e ele se punha a correr desnorteado pela dor, todo ensanguentado a grunhir em desespero para minha tristeza, fugindo dali aos prantos. Desde criança, revelei-me muito sensível, pedia licença aos matinhos e florzinhas do quintal para passar, segundo informações de minha mãe, haja vista que isto ocorria por volta dos meus dois ou três anos...

Foram essas as razões que me fizeram odiar o sacrifício dos animais, foram elas que não me permitiam colocar na boca nenhum tipo de carne e sentir prazer em algo que envolvia um sofrimento sem fim causado a inocentes por mãos de pessoas vis  que abusavam da sua força e poder. Os anos se passaram, tornei-me adulta e com o tempo essas lembranças foram se apagando aos poucos da minha mente. Comecei a comer carne depois de muito tempo quando tive meu primeiro filho aos 28 anos. Até hoje, antes de ingeri-la agradeço a dignidade daquele animal cujo corpo nasceu e morreu para nos dar energia e vida, peço perdão no meu âmago por cometer esse pecado que antes considerava inaceitável.

Todos esses fatos me levam a refletir sobre a triste sina destes seres abnegados. Os bois, como exemplo, animais magníficos de extrema beleza que vivem tão pouco e são dizimados aos rebanhos para alimentar homens,  entre os quais, poucos são merecedores desse imenso sacrifício. O mesmo destino ganham os porcos e galinhas, mortos aos milhares diariamente no mundo todo para garantir a vida de seres humanos que durante as refeições nem se lembram de agradecer a esses mártires puros. E, existem ainda os animais que são executados pelas mãos de  homens mesquinhos por valerem dinheiro como os felinos, paquidermes, répteis, etc.

O assunto é mais sério do que pensamos. Uma correção de textos entre as  que faço regularmente, me chamou especial atenção, aliás, não era correção e sim uma versão de trabalho acadêmico para a Língua Portuguesa a ser entregue na Faculdade Mackenzie. O relato era assustador, uma pesquisa científica sobre a biogenética, engenharia genética envolvendo o  bem-estar animal. Ali se exibiam quadros aterrorizantes, os quais nunca vou esquecer: um ser submetido a uma mutação genética, em benefício do ser humano, revelando  maus tratos e desprezo total a que era submetido pelo seu criador: perus que para produzirem carne macia e ganho de peso, mal conseguiam suster-se de pé exibindo os membros inferiores totalmente rachados e dolorosos; Chester, animal de laboratório que não era mostrado dado à aparência pouco aceitável,  no entanto,  consumido em larga escala;  vacas com câncer de úbere, provocado pelo abuso de ordenha mecânica e excesso de aplicação  de hormônios; sofrimentos em grandes granjas em que as aves viviam encarceradas, sem o mínimo de espaço necessário; recebendo altas doses hormonais de crescimento, tornando-os aptos para o abate aos seis meses de vida;  pintinhos sacrificados em máquinas trituradoras quando não apresentavam as condições de comercialização esperada...Tudo isso e uma Bioética que tentava inutilmente lutar contra essa tortura toda sem conseguir sequer atenção das autoridades.

Quando terminei a tradução, estava praticamente em lágrimas, voltou-me à memória o suplício sofrido pelos animais constatado na infância e  hoje verificado numa exacerbação exponencial sem respaldo algum,  não para matar a fome, mas para enriquecer grandes produtores inescrupulosos e  insensíveis...

Por isso, peço: agradecei  a carne daquele animal que enriquece sua mesa, lembre-se o quanto sofreu para te proporcionar uma vida saudável,  na sua inocência tomando amor pela mão do carrasco que o criou e o conduziu à morte. 

Penso comigo que não haveria necessidade desse tipo de alimento: a terra nos dá uma  imensidade de frutas, verduras, legumes, cereais, leite e derivados, sementes comestíveis, castanhas, capazes de manter nosso corpo saudável sem a necessidade de exterminar ou tripudiar sobre a vida dos pobres animais.