domingo, 8 de outubro de 2017

Todos nós, caros leitores, temos nosso momento de passeios pela memória, assim como nosso querido escritor e poeta Paulo Bonfim, que sempre nos presenteia na rádio Cultura com um episódio de sua vida, revelando momentos únicos e maravilhosos de sua existência. E é na idade mais madura que esses passeios acontecem com mais frequência...






Somos o que vivemos




Lembro-me bem da minha pré-adolescência na pequena casa onde morávamos em Araçatuba, estado de São Paulo, à rua José Bonifácio, 913, Vila Mendonça. Foi a maior aquisição que meus pais fizeram, a compra da casa própria. Recordo-me também dos momentos felizes que ali passamos, os folguedos naquele quintal imenso, repleto de árvores frutíferas altas em que eu e meu irmão brincávamos simulando o mastro de um navio. Hoje, na idade madura, volto a passear por aquela cidade e, em frente à casa onde morei, peço desculpas ao atual morador pela foto tirada sem permissão. Registro que ela continua a mesma, na sua estrutura original, até mais bonita pela decoração de plantas do alpendre e pela cor das paredes, entretanto, o que foi feito do imenso pomar que ali existia não posso avaliar, acredito que não mais deva existir, porque daqui de fora, posso vislumbrar outras residências construídas aos fundos, o que me provoca imensa dor...
Na ocasião da metade de  minha infância e pré-adolescência, ali estive por bons anos. Infelizmente, não foram só alegrias, todos têm seus momentos de tristeza e infortúnio, assim, convivemos com doenças que persistiram até boa parte de nossas vidas... Só Deus pode compreender o que isso significa e além dele, quem já passou por esses pedaços que marcam nossa jornada. 
Lembro-me bem da escola primária que frequentava, a Monsenhor Victor Ribeiro Mazzei; a hora do lanche sempre prazerosa, em que recebia o sanduíche de bauru, quentinho, feito por minha mãe e muitas vezes, entregue pelas mãos de meu pai por cima do muro... As dificuldades financeiras que faziam com que meu pai, viajasse a semana toda, exercendo a profissão de vendedor para dar o sustento à família, assim como do sacrifício de minha mãe, costurando toda a nossa roupa para poupar o dinheiro que não sobrava para estes fins. Sempre à máquina no fazer de uniformes, graças a ela sempre impecáveis: o avental branco pregueado do curso primário, a saia de pregas azul-marinho, a blusa branca do então chamado curso ginasial, sempre muito alva e o cuidado que ela dispensava para que frequentássemos a escola sempre dentro dos padrões exigidos nesta questão. Por vezes, altas horas da noite, encontrava-a com os olhos cansados a bordar bolsos de uniformes com as iniciais da escola, barrados das blusas de educação física, cujo logo eram os arcos dos jogos Olímpicos, quando não confeccionava meus vestidos, casacos, blusas e calças compridas para que pudesse me manter uma pessoa apresentável perante os amigos; enfim, essa mulher valorosa, para mim inigualável, perdeu boa parte de sua idade ainda jovem para se dedicar à seus filhos e marido, muitas vezes esquecendo-se de si mesma, num gesto de altruísmo imensurável. Agradeço-a infinitamente, são coisas inesquecíveis que jamais poderão ser pagas por mais que se tente recompensar esse gesto... Existem pessoas assim, que não se ocupam em conversas inúteis, não desperdiçam seu precioso tempo em fofocas com colegas a cuidar da vida alheia, porém não abandonam sua família e a mantém sustentável perante a sociedade, não importando o tamanho do esforço a ser feito. Hoje vejo em seu rosto cansado e envelhecido, a satisfação pelo dever cumprido, formação dos filhos e o resultado de toda a dedicação.
Não me é compreensível como meus pais conseguiram manter, embora com uma série de privações, o meu estudo de piano, talvez pela adoração que eu demonstrava sem nunca ter tido a oportunidade de possuir esse instrumento, apenas na idade adulta. Como agradeço por isso! Esse era o meu maior sonho, o qual com dificuldade consegui realizar.
São tantos passeios pela memória que seus registros são praticamente impossíveis de serem expostos de uma só vez apenas.
Um fato que marcou e de que até hoje me lembro em especial, foi a mudança para essa nossa casa própria. Todos ocupados a carregar a mudança para o interior da residência enquanto nós, os filhos e os primos, nos encantávamos com todo aquele espaço e com a imensa mamoneira a alguns metros da porta da cozinha, na entrada do quintal que parecia nos convidar a explorá-la. De repente, lá estávamos todos nós, a despeito da proibição de nosso genitores, empoleirados nos galhos daquela árvore, galhos relativamente fracos, e, foi ali mesmo onde estava, que um deles se partiu e despenquei de cara no chão a uns quase três metros de altura.
Nunca me esquecerei da sensação que tive naquele momento, de morte, de mal-estar, o rosto e a cabeça dormentes como que acordando de um pesadelo. O braço doendo terrivelmente, pois caíra sobre ele.
Também não me olvidarei jamais da expressão do rosto de meu pai: lívido como um cadáver, correndo até mim, tomando-me nos braços, como sentindo me perder, levando-me para o interior da casa, onde começaram a me fazer mil perguntas a que atordoada ia respondendo, balbuciando entre choro e arrependimento de ter desobedecido as ordens de meus pais. 
Súbito, vi meu pai ir para o quintal e voltar com um punhado de erva-santa maria, também conhecida como mastruz, que socaram em um pilão com sal e me amarraram ao braço, sempre me questionando se melhorara. A última cena gravada em minha memória foi a de meu pai, com o machado nas mãos a decepar a grande e inocente mamoneira, com golpes até violentos pela sua compleição física, persistindo incansável até que ela não mais resistisse e tombasse ao chão. 
Entre lágrimas de tristeza e dor, iniciava-se mais um ciclo em minha vida...


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